Pessoas trans têm mais dificuldades para se prevenir contra o câncer de mama
O Outubro Rosa é uma das campanhas de saúde de maior visibilidade no mundo. As informações sobre câncer de mama, como prevenir a doença e a importância do diagnóstico precoce são fortemente difundidas, mas, na prática, a maioria das brasileiras não consegue fazer o que recomendam os especialistas.
Os problemas começam pelas dificuldades que as mulheres encontram para realizar a mamografia, que é o mais importante exame de rastreamento. Ou seja, o exame que deve ser feito periodicamente pelas mulheres, mesmo sem sintomas. O percentual estabelecido como meta pela OMS para a cobertura mamográfica é de 70%. E o Brasil, nos últimos 10 anos, não conseguiu atingir mais do que 30% na faixa etária entre 50 e 69 anos, que é a faixa das mulheres que tem indicação do Ministério da Saúde de fazer rastreamento. Entre 2015 e 2019, a cobertura de mamografias em mulheres nessa faixa etária foi de apenas 23%. A região Norte foi a que apresentou o pior cenário: 94% dos municípios da região apresentaram cobertura de mamografias abaixo de 13%.
As razões para a cobertura mamográfica no Brasil estar tão aquém do ideal são várias. Uma das maiores dificuldades é conseguir consulta com um especialista, no sistema público. Além da consulta propriamente, é necessário que o médico solicite a mamografia e que a mulher leve o resultado para avaliação, o que muitas vezes não acontece. A má distribuição dos mamógrafos é outro problema sério. A maioria está nas capitais e grandes cidades. Grande parte da população das cidades menores, no interior, especialmente nas regiões mais pobres do País, não tem acesso ao exame. Se deslocar é muito difícil. Aparelhos quebrados ou em manutenção, falta de técnicos habilitados para consertar e mesmo para operar corretamente os equipamentos também são problemas no Brasil.
Se as dificuldades são enormes para a população feminina, são maiores ainda quando falamos de um público específico: PESSOAS TRANSGÊNERAS.
Uma pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp (Universidade Estadual Paulista), divulgada em 2021, estimou que a proporção de indivíduos transgêneros (que não se identificam com o gênero do nascimento) ou não binários (que não se identificam com o gênero feminino nem masculino) na população adulta brasileira é de aproximadamente 2%. Em números absolutos, são quase 3 milhões de pessoas no Brasil, o que reforça a urgência de políticas públicas de saúde voltadas para esses grupos.
Atualmente, poucos serviços médicos, públicos ou privados, possuem uma estrutura adequada para absorver e dar atendimento específico à população trans. Existe desde 2011 uma política de saúde integral da população LGBTQIA+ desenvolvida para o SUS (Sistema Único de Saúde), porém ainda pouco implementada. “É necessário que haja uma estrutura diferenciada para que as necessidades de saúde de homens e mulheres trans sejam atendidas com acolhimento, empatia e, claro, por profissionais capacitados para esse atendimento. Infelizmente, a população trans não tem o atendimento adequado “, lamenta a mastologista Camila Loureiro, do Centro de Tratamento Oncológico e integrante da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM). “Temos que reconhecer que falhamos no atendimento a esse público e que precisamos de mais qualificação e empatia com pacientes trans”, avalia Camila.
O preconceito e a discriminação são as principais dificuldades das pessoas trans na hora de se prevenir contra o câncer de mama. Além das dificuldades comuns de acesso a exames preventivos, que toda mulher enfrenta, essas pessoas têm que conviver com atitudes como o desrespeito ao nome social ou à identidade de gênero, e o desconhecimento de algumas especificidades nos cuidados com a saúde de pessoas trans por parte de alguns profissionais.
Jesus Gonçalves, de 38 anos, é um homem trans (nasceu com o gênero feminino, mas se reconhece como gênero masculino) e não costuma ir a médicos ou fazer exames de rotina para evitar constrangimentos. “O tratamento sempre é muito ruim. Como não fiz a retificação do registro de nascimento para usar o nome social, sou chamado pelo nome feminino. E é muito difícil encontrar profissionais de saúde com sensibilidade e empatia, preparados para atender pessoas trans”, lamenta.
A preocupação com o risco de doenças graves, como o câncer de mama, é constante. Mas a vontade de cuidar da própria saúde não é suficiente diante do receio de passar por novos constrangimentos. “Eu evito ir a médicos, se não for indispensável. Qualquer procedimento é muito difícil. Só de pensar em ir a um médico e passar por toda a situação é um estresse. Prefiro não ir”, afirma.
A primeira ida a um ginecologista e a primeira mamografia foram feitas há um ano, quando Jesus se preparava para a mastectomia, necessária para a transição de gênero. Apesar de não ter histórico de câncer de mama na família, ele sabe que o risco existe. “Sei que a cirurgia reduziu o risco para mim, e que preciso fazer acompanhamento periódico com outros tipos de exames, como o ultrassom na região onde havia tecido mamário, mas a busca por tratamento é complexa. Nunca tive nenhum atendimento digno da minha condição”, justifica.
“Precisamos trabalhar em sociedade essa questão de saúde para todas as pessoas, principalmente trans. Deveria haver treinamento dos profissionais de saúde, para que saibam minimamente como atender essa parcela da população”, conclui Jesus Gonçalves. “É vergonhoso ter que contar com a sorte de encontrar médicos qualificados para me dar o atendimento que preciso e mereço. Esses profissionais são minoria”, lamenta.
Pessoas transexuais e transgêneros também podem ser acometidas pelo câncer de mama e precisam se consultar com o mastologista e realizar os exames periódicos, além de manter hábitos saudáveis no dia-a-dia.
Os homens trans que passam pela mastectomia (retirada das mamas) não anulam por completo o risco de câncer, embora ele seja reduzido. Consultas periódicas também devem ser incentivadas, especialmente se houver risco genético hereditário identificado. A mamografia fica tecnicamente prejudicada pela redução do tecido mamário, mas a ultrassonografia pode ser realizada, além do exame clínico com um especialista. Em homens trans não submetidos a mastectomia, é recomendada a realização de exame clínico periódico e mamografia após os 40 anos de idade.
Nas mulheres trans, o uso de hormônios para induzir mudanças físicas, principalmente o aumento das mamas, pode gerar um aumento do risco de câncer na região. “Toda vez que uma mulher trans ou travesti usa estrogênio, suas mamas se modificam, aumentando o risco do desenvolvimento de câncer de mama, portanto elas precisam fazer rastreamento mamário”, explica a mastologista Camila Loureiro. “Elas devem fazer o mesmo rastreamento que as mulheres cis, ou seja, mamografia anual e exame físico a partir dos 40 anos, conforme recomenda a SBM (Sociedade Brasileira de Mastologia)”.
Segundo o Inca, estima-se que em 2023, mais de 73 mil novos casos de câncer de mama serão registrados no Brasil – o segundo tipo com maior incidência, com 10,5% do total de diagnósticos (o 1º em incidência é o câncer de pele não melanoma). O diagnóstico tardio, ainda predominante no Brasil, aumenta muito a gravidade da doença e os índices de mortalidade. Em contrapartida, se o câncer de mama for diagnosticado e tratado oportunamente, o prognóstico é muito bom. As chances de cura são superiores a 90%.
A mortalidade por câncer de mama no Brasil é alta. É o câncer que mais mata mulheres no País. Dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca) apontam que cerca de 18 mil mulheres morrem de câncer de mama por ano. Essa mortalidade se mantém estável desde 2008. Isso se deve, em parte, às dificuldades de acesso ao diagnóstico e ao tratamento.
Fonte: Assessoria
Por Dina Santos